Os feminismos carregam uma marca indelével: são o resultado da combinação entre teoria e prática, uma não vai sem a outra, e ambas se desenrolam, se transformam e se desenvolvem a partir do entrelaçamento entre as duas. É por essa premissa que se pode dizer que a teoria feminista é uma teoria crítica e que epistemologias feministas estão em consonância com a constante atualização do diagnóstico do que, em cada momento histórico, impede as nossas possibilidades de emancipação. Atualizar o diagnóstico conforme cada momento histórico, percebendo cada coisa e como estas coisas se modificam com o tempo, exige uma aguda capacidade de olhar o presente com estranhamento, numa visada de lucidez que possa tentar ver hoje aquilo que talvez, no futuro, os historiadores venham a dizer a nosso respeito. A eclosão, em março de 2020, da pandemia de covid-19, exigiu – mesmo que de modo traumático – essa visada de um acontecimento histórico cujas dimensões ainda não podemos alcançar. Foi relativamente óbvio perceber, no entanto, que a suspensão de todas as atividades econômicas operou como uma lente de aumento em relação às desigualdades já existentes, exigindo modificações urgentes.
Esse foi o ponto de partida no projeto Solidariedade em cursos, que se desenvolveu a partir de um tripé: 1) apoio a grupos de mulheres vulnerabilizadas em função da pandemia; 2) apoio a professores/as egressos/as de universidades públicas sem inserção no mercado de trabalho e alunos/as de graduação em situação precária; 3) intervenção no debate público. Para isso, o projeto reuniu o laboratório Filosofias do tempo do agora (UFRJ/CNPq) e o grupo Dissonâncias coletivas, onde estão organizados os cerca de 21 pesquisadores de mestrado, doutorado, pós-doutorado, sendo seis recém-doutores egressos do PPGF/UFRJ (Gabriel Lisboa Ponciano, Guilherme Cadaval, Isabela Pinho, Nathan Menezes, Pedro Oliveira, Victor Galdino), dois recém-doutores egressos de outros programas e pós-graduação na UFRJ (Danielle Magalhães (PPGCL) e Everton Rangel (PPGAS). O projeto contou ainda com a participação voluntária de dicentes e pesquisadores do PPGF: quatro mestrandos (Ana Luisa Gussen, Beatriz Zampieri, Luis Felipe Teixeira, Teresa Dantas), três doutorandos (Ana Emília Lobato, Katiúscia Ribeiro, Petra Bastone), duas pesquisadoras de pós-doutorado (Juliana de Moraes Monteiro/Faperj e Isabela Pinho). De outros programas de pesquisa vieram ainda Mariana Poyares (New School), Paula Gruman (Université de Paris), Rafael Cavalheiro (PPGTP/UFRJ), Tassia Áquila (PPGSA/UFRJ) e Viviane Bagiotto Botton (Uerj).
Temos concebido nosso trabalho como uma passagem por uma porta estreita – de novo uma referência ao filósofo Walter Benjamin – em que nem pretendemos ceder à mera simplificação de elaborações filosóficas complexas, nem desejamos reiterar um dos problemas que identificamos nos cursos de pós-graduação em Filosofia, qual seja, o acesso restrito apenas aos especialistas. Por essa porta estreita tivemos a felicidade de nos articular com a Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, com quem desenvolvemos também o projeto Mulheres que lêem mulheres, uma série de vídeos de pesquisadoras explicando quais são as autoras importantes para suas pesquisas.
Foi também uma oportunidade de nos encontrar com um número imenso de pessoas interessadas em dialogar conosco. Ao todo, passaram pelo projeto cerca de 700 pessoas, distribuídas por todas as regiões do país e também no exterior, uma grande maioria ligada à universidade como docentes ou discentes. Começamos a trabalhar em junho, ainda no que poderíamos chamar de estado de emergência, inspirados por uma proposta do projeto As pensadoras. No primeiro semestre, oferecemos um curso breve, com 11 encontros que se propunham a uma dupla função: o grupo docente, então formado apenas por recém-doutores/as, apresentou suas pesquisas, mas também teve como desafio produzir uma intervenção no debate público sobre a pandemia, seus efeitos e consequências para a vida social. Para o segundo semestre, oferecemos um curso mais longo, de 31 encontros, dividido em blocos temáticos que podiam ser cursados isoladamente, o que tem sido um desafio muito maior, mas também um aprendizado cotidiano de revisão das nossas práticas. A este respeito, algumas coisas fundamentais.
Os cursos são concebidos pelos professores e professoras, organizados em grupos, que estão apresentando temas de suas pesquisas. Ou seja, há um caráter de intervenção na oferta de um encontro em que o que se propõe é uma experiência de transmissão que funciona como uma via de mão dupla, formando tanto corpo docente como corpo discente. Essa característica faz com que o projeto seja uma forma de o laboratório levar à sociedade as pesquisas que produz, de tal modo que não se trata de capacitação ou de introdução, mas de uma interlocução. Nesse sentido de interlocução, também gostaríamos de destacar a imensa quantidade de pessoas inscritas no curso que, de todos os lugares do país, estão nessa dinâmica com o nosso trabalho na UFRJ. Apesar dos inúmeros desafios e dificuldades que enfrentamos com as plataformas virtuais, é um ganho imenso para ambas as partes poder conversar além dos muros da universidade, mas não sem ela e as agências de fomento que dão suporte às pesquisas.
A Faperj, por exemplo, teve papel decisivo na elaboração e sustentação do curso. Foram os recursos da agência que tornaram viáveis o acesso às plataformas digitais, permitiram a construção deste e o fomento constante de informações sobre o projeto nas redes sociais, instrumento determinante na interlocução com o público para além das fronteiras da universidade. Interlocução essa que também se deu com professores e professoras. Paulo Arantes (USP), Daniel Arruda (UFF) e Maria Walkiria Cabral (UFRJ) foram conferencistas convidados a contribuir graciosamente para o projeto. Outros docentes colaboraram com doação de bolsas de estudos, indicando seus estudantes ou entregando ao projeto a responsabilidade da indicação. As 30 bolsas arrecadadas na segunda etapa do projeto foram direcionadas a três instituições que o projeto está apoiando: ao CAFIL, que é o centro acadêmico de alunos de graduação em Filosofia na UFRJ; ao Instituto Marielle Franco, e a Redes da Maré, que tem sido a nossa maior parceria e indicou como bolsistas estudantes universitárias da comunidade. Aqui, cabe mencionar a importância da organização Redes da Maré, movida por uma força de solidariedade feminista, cujas origens estão diretamente ligadas à luta pelo acesso à educação e remontam aos anos 2000 com a criação do Curso Pré-Vestibular Comunitário da Maré. Desse primeiro projeto de vestibular comunitário saíram muitas iniciativas pedagógicas/educacionais, sob a coordenação de Eliana Souza. Dentro do Redes da Maré, estamos apoiando financeiramente o projeto "Maré de Sabores", vinculado à Casa das Mulheres da Maré e responsável por empregar cozinheiras e costureiras, servindo refeições diárias para população vulnerável e confeccionando máscaras de proteção.
Ampliamos nossas parcerias e buscamos diversas editoras, que se dispuseram a ser solidárias com o projeto. Começamos com a Apeku, editora onde o professor Rafael Haddock-Lobo coordena uma coleção de livros filosóficos, reafirmando nossa parceria com o laboratório de pesquisa Encruzilhadas Filosóficas, coordenado por ele e do qual muitos pesquisadores são integrantes. Na sequência vieram a editora Autêntica, com títulos de autores ligados aos cursos, notadamente Giorgio Agamben e Judith Butler, e aos poucos formamos uma onda de doadores de livro na qual entraram ainda a Azougue, a Circuito, a UBU, Papéis selvagens e TAG Livros, com doação de 39 títulos, dos quais 24 foram sorteados entre pessoas inscritas no curso e 15 direcionados para a biblioteca do Redes da Maré.
É com alegria que fazemos esse relato, como registro, inclusive para nós, do que podemos fazer quando arriscamos fazer algo – ainda que sem saber o que nos aguardava, ainda que sem saber tudo o que conseguiríamos realizar ao longo do semestre, seguimos porque confiamos em nosso desejo e nas pessoas ao nosso redor. Quando crítica, a teoria é uma aposta, o abandono do porto seguro onde o sucesso é garantido. E o próprio porto pode se tornar estranho, pois não se manifesta mais em toda a sua sólida autoevidência, pois não somos mais as pessoas que se sentiam seguras ali. Na desorientação sem fim dos nossos dias pandêmicos, e a desorientação pode ser parte da normalidade na qual nos amparamos, o tempo do agora pede confiança em nossas capacidades, nas capacidades do outro, nas capacidades dos encontros, nas possibilidades imprevistas que acompanham uma aposta, na potência crítica como alimento constante das práticas cotidianas. Os cursos de 2020 se encerram mostrando serem apenas uma das possibilidades que se desdobraram quando nos arriscamos.
Esperamos nos reencontrar em 2021.
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