No livro “Derrida, um egípcio”, o filósofo alemão Peter Sloterdijk, afirma que, depois da modernidade, a condição de toda teoria é ver-se “alçada ao nível de uma observação de segunda ordem: não se tenta mais fazer uma descrição direta do mundo, mas descrevem-se novamente as descrições já existentes – e com isso, elas são desconstruídas”. Parece, então, que a especificidade do pensamento que veio com o fim da época moderna é a de uma certa impossibilidade de acessar diretamente o mundo, como se apenas se herdasse um mundo de segunda mão, já observado e descrito de maneira exaustiva. Como se à pós-modernidade coubesse a tarefa de oferecer testemunho de um mundo que desapareceu, ou antes, dessa desaparição mesma.
Contudo, talvez o que desapareça não seja rigorosamente o mundo, mas a postura da relação com ele estabelecida, baseada que estava na evidência de uma verdade cujo acesso era direto, imediato, disponível a um sujeito puro. A desaparição do mundo não implica que toda e qualquer descrição se torne banalmente impossível – uma vez que faltaria seu objeto – mas, antes, que a descrição já não pode se tranquilizar na certeza de um referente externo, presente e idêntico a si mesmo, a fim de garantir sua validade.
A desconstrução, pois – termo pelo qual ficou conhecido o pensamento do franco-argelino Jacques Derrida, do qual nos ocuparemos neste bloco –, implica em uma responsabilidade de outra ordem, uma tal que advém justamente da impossibilidade – desta vez em sentido forte – de uma descrição direta do mundo. Para esta responsabilidade não está disponível nenhum parâmetro de “verdade”, o que, justamente, faz brotar a necessidade de colocar a verdade entre aspas, não de forma a destruí-la, mas mantendo-a suspensa, separada de sua certeza acerca de si mesma, sempre aberta à vinda de um acontecimento que a obrigue a se repensar.
Pois, por outro lado, esta suspensão de toda certeza faz com que a herança do pensamento ocidental – as descrições de “primeira” ordem – apareça na arbitrariedade sempre tão violenta das oposições hierárquicas fundamentais sobre as quais ele se construiu e se assegurou de si mesmo, como aquelas, por exemplo, que opõem “cultura” e “natureza”, “humano” e “animal”, “homem” e “mulher”, “filosofia” e “literatura” etc., todos termos doravante capturados pelo regime suspensivo das aspas.
Não se trata, assim, se realmente entendemos a desconstrução como esta observação de segunda ordem, de uma questão tão somente epistemológica. Os desdobramentos ético-políticos de tais hierarquias são múltiplos, infinitos, e não cessam de produzir efeitos para muito além de seus contextos específicos. De certa maneira, o que se anuncia nessa impossibilidade de acessar diretamente o mundo é o fato de que o único acesso a ele passa pelo outro. Ou seja, este ponto de partida situado em uma impossibilidade não constitui o desaguar negativo da aventura moderna. Pelo contrário, ele busca colocar em jogo justamente aquilo que a modernidade nunca pode enxergar, isto que de fato ela precisou reprimir, rebaixar, excluir, pois apenas por este gesto podia tornar-se a si mesma, reconhecer-se na sua identidade própria.
O que resta, assim, frente à consumação da identidade moderna, da sua pretensão de descrever diretamente o mundo? O que fazer das cinzas que persistem, que não chegam a ser nem a presença da coisa mesma, nem a sua ausência completa, mas algo outro? Resta, talvez, testemunhar, prestar testemunho disto do qual o regime da verdade nunca pode se apropriar inteiramente, isto que, por esse motivo, está sempre porvir pois que está sempre exigindo mais uma palavra, mais uma observação, mais uma descrição. Isto que, no pensamento derridiano, é chamado por muitos nomes, sem corresponder exatamente a nenhum, e que o torna, por isso, maior que o mundo, menor que um mundo.
Texto de Guilherme Cadaval, um dos professores do bloco temático sobre Jacques Derrida no Curso de ética e filosofia política no tempo do agora.
Para se inscrever acesse https://www.tempodoagora.org/cursos, serão duas aulas, nos dias 20 e 22 de outubro.
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