Filósofa com um doutorado em Direito, ativista e com uma importante experiência nos movimentos e sindicatos de mulheres nos Estados Unidos, Drucilla Cornell é professora de Ciências Políticas e Estudos de Mulheres e Gênero e Literatura Comparada na Rutgers University/NJ. Com apenas três artigos disponíveis em português, Drucilla é uma filósofa feminista que tem se preocupado em pensar o “feminismo ético”, como propostas revolucionárias, inspiradas pelos ideais socialistas, anti-imperialistas e descoloniais. Para a jusfilósofa, o feminismo envolve gesto apotropaico, um ritual contra o apagamento incessante da diversificação e da diferenciação do feminino dentro da distinção sexual e das representações culturais. Em outras palavras, o feminismo deve buscar sempre quebrar essa condição feminina que diferencia “sujeitas” na sexualidade e naquilo que representam para e na sociedade. A luta feminista é uma luta contra a distinção das mulheres em todas as situações possíveis, para além das figuras restritivas de mulher.
Nesse sentido, é importante compreender que, sem ética, não há feminismo possível, sob pena de se reiterar o silenciamento promovido pela ordem simbólica em vigor, e sem feminismo não há relação ética que seja capaz de descontruir o sistema moderno e falogocêntrico instituído para dominação e segregação dos corpos. Para que se pense o feminismo como forma de superação do patriarcado, é urgente trilhar o debate feminista para além da discussão acerca de “qual grupo de mulheres tem o melhor feminismo” ou “qual grupo feminista é mais excludente”, direcionando o debate para a (des)construção dos caminhos para a mudança que todos nós podemos fazer enquanto seres humanos contra a ordem falocêntrica.
Em “O que é feminismo ético?”, Drucilla lembra que L. Wittgenstein já dizia sobre o problema de se criar sistemas de interpretação, a fim de colocar limites como linguagem ou linguagem como limites. Esse limite derivado da linguagem recua toda vez que tentamos filosoficamente defendê-la. Ou seja, toda vez que estabelecemos interpretações e colocamos a linguagem (jurisprudência, por exemplo) como limite do nosso mundo, temos um recuo do limite: perdemos em significado, algo fica de fora. Quando esse algo fica de fora, ao mesmo tempo que ele cria o mundo de dentro, ele também expõe as possibilidades de saída, garantindo que não permanecemos prisioneiros a ele.
Nesse sentido, em suas várias vertentes, o feminismo não se limita a uma corrente de pensamento, pois se trata de um movimento constante que combina a produção intelectual questionadora à ação, à militância pelos direitos de todes, sob uma perspectiva da diferença sexual, isto é, sob a análise da formação da sociedade a partir da dominação masculina. Mas para que as mulheres, constituídas no patriarcado como aquilo que sobra da diferença sexual enquanto uma não-referência sexual, possam ter condições mínimas de lutarem pelos seus direitos nas suas múltiplas formas de existência, Drucilla irá defender a importância de toda pessoa ser garantido o “domínio imaginário”, isto é, o domínio sob o espaço psíquico da imaginação, que garante a todo ser humano se constituir livremente como ser sexuado, enquanto parte da constituição da personalidade. Nesse sentido, só será possível concretizar as exigências feministas de igualdade quando entendermos a necessidade de exigir também liberdade, sendo a liberdade sexual intimamente ligada à compreensão e a consequente liberação das restrições ao imaginário impostas pela heterossexualidade normalizada, pela hierarquia de gênero, pelo racismo e pela colonização. No ideal do feminismo ético, a “única restrição ao livre jogo do nosso imaginário sexual é o respeito pelo igual valor dos outros no espaço público, exigido pela proibição da degradação” (CORNELL Drucilla. The Imaginary Domain: A Discourse on Abortion, Pornography, and Sexual Harassment. New York: Routledge, Chapman & Hall, 1995, p. 232).
Ao aproximar a filosofia feminista do sistema jurídico, o simples alargamento do rol de direitos das mulheres não é suficiente para diminuir as injustiças criadas pela sociedade patriarcal, que se forma, em termos gerais, por pessoas que se enquadram no perfil do dominante e pessoas excluídas pelo cálculo biopolítico. Nesse sentido, é preciso desconstruir e buscar a justiça fora da lógica racional moderna, essencialmente heteronormativa. Para isso, é preciso que o feminismo esteja sempre em movimento, ao olhar para as violações dos direitos das mulheres (e todo grupo de vulneráveis colocado a parte da centralidade fálica), para que não seja apenas conceito, que se perde ao se fixar, criando novas injustiças e violações.
Com o projeto coletivo uBuntu Project, iniciado em 2003, o pensamento sobre o feminismo ético e a filosofia feminista do Direito se expande, passando a considerar as relações entre os valores éticos eurocêntricos com os da filosofia africana na tomada de decisão dos juízes da Corte Constitucional da África do Sul, a partir de casos importantes como o de Nkunzi Zandile Nkabinde, uma sangoma lésbica ativista, e o Caso Bhe, das mulheres que tiveram o direito de herança negado.
Na África do Sul, pós-apartheid, o movimento feminista está diante de um desafio que envolve a proteção aos costumes dos povos originários e a proteção das mulheres e grupos LGBTI. O que ficará marcado pelos casos debatidos por Drucilla é que o uso do princípio do uBuntu no sistema jurídico vigente tem contribuído com a interpretação das relações entre o direito moderno, ali instituído pós-colonização, e o direito costumeiro dos povos originários, que passa a ser reconsiderado somente no pós-apartheid. Nesse momento, o olhar passa a ser para um feminismo transnacional, a partir da filosofia do uBuntu, como uma das formas possíveis de desconstrução do sistema patriarcal.
O feminismo transnacional, como um ideal ético e uma luta real para formar alianças políticas, levanta algumas das questões mais difíceis e ardente do que significa desafiar vieses eurocêntricos profundos que muitas vezes têm estado no caminho de tal coalizão. (...) uma aliança transnacional realmente exige de nós que nos abramos para repensar algumas de nossas ideias feministas mais queridas, como liberdade e igualdade, sem desistir desses ideais (CORNELL Drucilla. Law and Revolution in South Africa: uBuntu, Dignity, and the Struggle for Constitutional Transformation. New York: Fordham University Press, 2014, p. 124).
Os ideais feministas de liberdade e igualdade são revisitados pela dignidade oriunda do princípio do uBuntu, que é hoje, para a jusfilósofa, a mais elevada forma de se pensar os valores humanos e isso se apresenta, principalmente, na jurisprudência consolidada na África do Sul. No entanto, o ideal do uBuntu não deve ser tomado de forma acrítica. Nesse sentido, e por um lado, as concepções tradicionais locais não devem ser pensadas para total substituição da lógica eurocêntrica, mas ambas devem passar por uma desconstrução, a fim de que seja possível alcançar novos sentidos para as sociedades.
Seria muito simples, e certamente contra a base da filosofia africana, argumentar que é preciso simplesmente abandonar a melhor filosofia europeia ou continental. Em vez disso, deve haver um engajamento crítico entre essas diferentes tradições filosóficas — e quero dizer crítica no melhor sentido da palavra — na medida em que precisamos ver como as relações entre os desenvolvimentos de diferentes vertentes da teoria crítica se constroem e às vezes limitam-se umas às outras (CORNELL, Drucilla; MUVANGUA, Nyoko. uBuntu and the Law: African Ideals and Postapartheid Jurisprudence. New York: Fordham University Press, 2012, p. 14).
Por outro lado, é preciso que o trabalho pelos direitos da mulheres não exija uma eliminação total e direta das normas dos povos originários, que por vezes pode manter, sob o olhar totalizante da sociedade moderna, um caráter segregador da figura do masculino e do feminino, em especial dos seus papéis na comunidade.
Isso significa que os casos de violações dos sujeitos não masculinos, pela aplicação do direito costumeiro, desafiam os juízes da Corte Constitucional, que estão sob a pressão das lutas feministas atuais e que precisam entender a necessidade da proteção das conquistas dos povos originários no pós-apartheid ao mesmo tempo que precisam manter a proteção a todos os grupos com suas especificidades. No entanto, tomando o uBuntu como princípio hermenêutico que regulamenta e guia a aplicação dos direitos, será possível orientar a proteção dos sujeitos de direito pelo senso de comunidade, pelo senso de pertencimento, pelo senso de vida coletiva e não exatamente pela dignidade daquele indivíduo isoladamente, porque a dignidade de forma individualizada deve ser uma consequência do fortalecimento da comunidade.
Por isso, é importante destacar que a filosofia africana, sob a leitura de Drucilla Cornell, nos é capaz de desconstruir os fundamentos do sistema jurídico de uma sociedade, promovendo uma virada nas posições da jurisprudência e, consequentemente, na construção do mundo de maneira mais justa.
Em suas recentes obras, Drucilla irá ainda enfrentar o debate do humanismo versus pós-humanismo, a importância do caminho da anti-violência e as possibilidades de uma revolução. Diante desses “novos” debates e inspirada no feminismo de Rosa Luxemburgo, Drucilla Cornell nos conta como o feminismo ético toma o caminho revolucionário, em conferência exclusiva para o canal do Tempo do Agora, no dia 28/10 às 19h, link aqui: https://youtu.be/k_ac-EowKkE
Venham conferir!
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