O luto coletivo é a luta!
Carta do Eixo de Humanidades à comunidade IFRJ em tempos de Covid-19
O nos salvamos juntos o nos hundimos
separados (Ou nos salvamos juntos ou
afundamos separados)
Juan Rulfo, México y los mexicanos
No domingo dia 03 de maio de 2020, tivemos a infeliz notícia do falecimento de
dois de nossos alunos vítimas da Covid-19: Andrezza Cristina Moura, caloura de Terapia Ocupacional, 23
anos, técnica de enfermagem na UPA da Rocinha e Jorge Luiz Barboza, 50 anos, aluno
veterano de Fisioterapia, e conhecido por sua doçura e gentileza, que, segundo soube-se,
atuava como segurança e provavelmente não pôde cumprir o protocolo do
isolamento social. Naquele dia, os números da pandemia se transformaram em nomes
que provocaram imagens na memória. Foi um dia de grande dor para todos da
comunidade CREAL, mas também uma oportunidade para refletirmos sobre o lugar do
campus Realengo, conhecido como campus da saúde, no contexto da instituição IFRJ,
bem como sobre o nosso lugar nesse território. Como o campus que forma profissionais
na área de saúde ele acumula maiores responsabilidades do que os demais, já que
nossos alunos além de viverem em sua grande maioria em estado de vulnerabilidade
social, estão também sendo convocados para trabalhar na linha de frente do combate à
pandemia.
Por certo que providências técnicas como a pronta iniciativa de produção de
álcool em gel por parte dos corpos docente e discente dos técnicos e graduandos em
Farmácia (campi Rio de Janeiro e Realengo), bem como o trabalho de produção de
máscaras em 3D para profissionais de saúde (campus Volta Redonda), devem ser mais
do que aplaudidas. Mas ainda estamos às voltas com a necessidade de discutir os
contornos políticos e sociais da pandemia. Não podemos cair na falácia de que é
necessário ou possível desvincular a expertise técnica da ação política.
Todos somos técnicos em alguma área de conhecimento, mas também todos somos seres sociais que,
em nosso caso, na condição privilegiada de sermos portadores de tal expertise num país
marcado por extrema desigualdade social e de divisão do capital técnico e cultural,
precisamos assumir nossa tarefa de engajamento ativo na elaboração de propostas
transdisciplinares concretas de trabalho que possam diminuir os danos das
circunstâncias agora vividas por todos nós, servidores, alunos, terceirizados e pelas famílias de todos
os que foram e/ou virão a se tornar vítimas fatais da pandemia.
Realizar um mapeamento adequado da comunidade com relação à Covid-19
levando adiante e aperfeiçoando a iniciativa do questionário dos alunos (Separados por
Nós); discutir coletivamente as medidas provisórias e portarias que tratam da
convocação dos alunos estagiários para o enfrentamento da epidemia a fim de realizar
um trabalho de base, ao lado dos diretórios acadêmicos, de esclarecimento das
consequências reais da adesão à essa convocação; auxiliar no processo de luto dos
familiares das vítimas; diminuir os impactos da pandemia junto ao entorno do campus
e à população local; incrementar a rede de solidariedade interna iniciada também pelos
alunos (SolidarIF) de modo a minorar o estado de precariedade em que muitos deles e
funcionários terceirizados se encontram. Essas parecem ser algumas tarefas que
precisamos encarar e para as quais será necessário desenvolver um plano diretivo de
ação. É hora de refletir sobre o tipo de trabalho que podemos realizar nesse momento
que realmente venha a fazer alguma diferença no controle da pandemia e na vida das
pessoas. Se foi possível adiar essa reflexão até então, aquele domingo veio para avisar
que já não dava mais.
A filósofa Judith Butler faz uma importante reflexão acerca da necessidade de
“realização de um luto público como uma forma de ação política”. Ela salienta a
existência de uma política de luto, consciente ou não, que faz com que algumas vidas
sejam consideradas valiosas e, portanto, quando perdidas, passíveis de serem
enlutadas, enquanto outras vidas são vistas como desimportantes e, caso se percam,
não são passíveis de luto. Essa reflexão faz mais sentido do que nunca. Realizar o
trabalho do luto coletivo seria um mecanismo não apenas de reconhecer a perda dessas
vidas, mas de retirá-las da condição de invisibilidade, dando-lhe o reconhecimento de
que ali havia vida vivível, evitando assim o acúmulo de duas mortes: uma perpetrada
pelo destino social, e a outra pelo destino natural.
Em tempos de pandemia é tarefa de uma instituição pública de ensino superior
e tecnológico produzir todo tipo de tecnologia capaz de arregimentar a luta contra o
vírus, mas é também seu dever colaborar com o processo de construção do luto público/ político
dos seus membros perdidos (o que também é uma tecnologia), e um modo possível de
realizar isso é transformar essas perdas em luta. Formamos não apenas técnicos de nível
médio e superior na área de saúde, mas indivíduos e cidadãos que para exercerem suas
expertises adequadamente, e de modo crítico e consciente, precisam primeiro ter
ferramentas de compreensão da produção social do lugar dos indivíduos na convivência
social de um modo em geral, mas também do lugar dos mesmos na economia da
distribuição (desigual) do luto em que estamos mergulhados. Enquanto instituição e
com uma pauta transdisciplinar de trabalho temos infraestrutura para colaborar com
essas duas tarefas ao mesmo tempo durante a pandemia.
A falsa contradição entre a validade do investimento nas ciências hard e nas
ciências humanas nos faz acreditar que se trata de uma questão de prioridade das áreas
de conhecimento mais evidentemente aplicáveis. É esse engodo que informa a atual
política do governo federal em relação às humanidades. Já em meio à pandemia (dia
24/03), o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI) publicou
uma portaria que exclui a área de Ciências Humanas das prioridades de projetos de
pesquisa no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) até
2023 com o argumento de que o objetivo da decisão era alavancar setores que teriam
maiores potencialidades “para a aceleração do desenvolvimento econômico e social do
país”.
Na semana anterior, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes) já havia alterado regras para concessão de bolsas seguindo o mesmo
princípio de que o fomento à ciência tem que dar retorno imediato. Ora, todos sabemos
que conhecimento é um processo do desenvolvimento cognitivo humano que demanda
tempo e acúmulo de saberes e práticas, assim como sabemos que o interesse no lucro
não pode ser o leimotiv da produção científica, pelo menos não de uma plataforma
científica que objetive a emancipação humana em todas as suas dimensões e não a
prestação de contas ao grande capital. Trata-se claramente de um movimento de
combate ao pensamento crítico e às suas repercussões políticas e de esmagamento de
toda e qualquer voz dissonante àquela do poder central.
Por isso é mais do que nunca importante aproveitar a ocasião para salientar o
papel que as ciências humanas e a filosofia podem cumprir na condução de um diálogo
democrático e republicano no terreno da produção do conhecimento científico, e, no
contexto atual, salientar a sua importância na construção da história das doenças e das
pandemias. As ciências humanas e a filosofia trabalham no que poderia ser denominado como o
terreno das tecnologias do pensamento. Já temos bibliografia nacional e internacional
que baste para provar a importância desses saberes na compreensão das implicações
político-sociais da própria produção científica.
Sem a ajuda de historiadores, cientistas sociais e filósofos, como entenderíamos
que a gripe de 1918, mais conhecida como “gripe espanhola” surgiu, na verdade, nos
EUA, e que recebeu essa alcunha para que a América não ficasse estigmatizada? Como
entender as razões sociais da resistência da população carioca em 1904 à vacinação
contra a varíola (episódio conhecido como “a revolta da vacina”) ou mesmo o
negacionismo presente no reaparecimento do movimento anti-vacina atualmente?
Como compreender que a pesquisa para a cura da febre amarela (flagelo dos imigrantes
recém chegados ao Brasil que vieram para substituir a mão de obra escrava nas lavouras
do sudeste cafeeiro nos anos setenta do século XIX) se revelou muito mais relevante às
nossas classes dominantes do que a cura da tuberculose que afetava majoritariamente
a população negra?
Naturalmente os higienistas escolheram à época priorizar algumas doenças em
detrimento de outras, e isso por razões sociais e políticas que são estudadas
prioritariamente pelas ciências humanas. E o mesmo acontece agora com a Covid-19.
Como entender o avanço do anti-cientificismo em escala global em plena pandemia?
Como desenvolver ações públicas capazes de controlar o espalhamento da Covid-19 nos
grupos sociais mais vulneráveis como os moradores das favelas, a população em
situação de rua, os sem teto, os indivíduos no sistema carcerário etc., se não lançarmos
mão do trabalho de antropólogos, sociólogos e epidemiologistas?
Um documento publicado pela plataforma Ciências Sociais em Ação Humanitária
promovido pela UNICEF e pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento sintetizou
quinze lições aprendidas das epidemias passadas de gripe e da SARS, documento que
está sendo de importância fundamental para o enfrentamento do SARS-CoV-2. Uma das
lições a ser aplicada ao contexto atual é justamente a que demanda transparência da
informação ao público, pois se as pessoas não obtiverem informações de dados de
fontes oficiais, elas dependerão de meios não confiáveis. Em tempos de pós verdade e
fake news essa demanda é de primeira ordem.
A pandemia do coronavírus tornou evidentes as contradições presentes no estilo
de vida hegemônico no hipercapitalismo (hiper concentração da população nas cidades,
desenvolvimento ecologicamente insustentável, desemprego estrutural, extrema
pobreza e extrema desigualdade etc.), mas foi na morfologia do trabalho que ela
escancarou uma de suas maiores contradições: que os indivíduos que trabalham em
serviços essenciais são os pior remunerados, e aqueles cujas mortes, além de mais
precoces e numerosas, são duplamente invisibilizadas. Invisíveis em vida e invisíveis na
morte, com ou sem pandemia. Os trabalhadores precarizados de diferentes maneiras
que não conseguem realizar o isolamento social por razões econômicas formam um
cordão sanitário que nos protege do vírus e nessa medida já foram escolhidos como
inelutáveis. Seria esse enquadramento social o que explicaria, em parte, a morte desses
dois alunos?
Em tempos de Covid-19 e do espectro que nos ronda de mortes solitárias e
anônimas torna-se um desafio ainda maior tornar visível o invisível. Que a pandemia nos
ensine sobre a necessidade de superação desse modelo de desenvolvimento que
inequivocamente deságua no projeto político de invisibilização e exclusão permanente
dos que são considerados econômica e socialmente indesejáveis. A política de morte
levada a cabo cotidianamente por governanças conservadoras mundo afora sob o
imperativo dos regimes de austeridade econômica se aprofunda em tempos de
pandemia. A primeira reação dos governos da Europa Ocidental e EUA diante da
pandemia, devidamente seguida pelo executivo federal brasileiro, foi a de conformarse
com o número de mortes (como se fossem inevitáveis) e repetir à exaustão que “a
economia não pode parar”. “O que são sete mil mortes perto do colapso da economia?”
Na Grã-Bretanha, o primeiro ministro que chegou a cogitar a política de imunização de
rebanho, e a menosprezar a morte de idosos (cidadãos não produtivos), e cujo partido
colaborou com o desmantelamento do sistema público de saúde inglês -NHS-,
ironicamente acabou sendo salvo da Covid-19 por esse mesmo sistema público de
saúde.
A falsa contradição entre a promoção da saúde e o equilíbrio econômico é outra
falácia que precisa ser constantemente desmistificada seja pelos keynesianos de ocasião
(que por ora abundam), seja pelos que desde sempre compreenderam e acataram
verdadeiramente o valor intrínseco da vida e de um sistema de saúde público, gratuito
e universal (como outrora foi o NHS) que possa garanti-la. No Brasil essa luta se
confunde com a luta pela manutenção e aperfeiçoamento do SUS. Lá e cá foi necessário
o advento de uma calamidade natural de proporções nunca antes vistas para que isso
fosse reconhecido.
Enfim, é para ensejar vida onde viceja a morte que se faz necessário repensar o
modo como estamos encarando o trabalho durante a pandemia. Para isso precisamos
repensar nossa agenda e o tanto de energia que está sendo gasta na tentativa de
manutenção do calendário ordinário das reuniões acadêmicas. É certo que existem
pendências administrativo-acadêmicas inegociáveis, prazos a serem cumpridos
inexoravelmente etc., mas também é certo que se não reorientarmos o uso do tempo e
da energia que ainda nos resta em meio a esse caos para criarmos essa plataforma
coletiva e transdisciplinar de trabalho, envolvendo docentes, discentes e técnicos,
realizando parcerias institucionais etc., estaremos incorrendo noutro senso comum
equivocado que organiza hegemonicamente a lógica do trabalho nos tempos atuais: o
produtivismo (entendido como uma má interpretação do que seja produtividade), primo-irmão
do raso pragmatismo, cuja característica principal é estar tão ocupado se atendo
ao cumprimento das prioridades normativas do antigo normal (que já não existe), que
não lhe sobra tempo para enxergar que apenas o exercício do trabalho criativo e coletivo
é realmente emancipador, e que, num momento de “estado de exceção viral”, pode vir
a tornar-se a nossa grande chance de nos salvar.
O tempo urge!
Diana Pichinine
(Professora de filosofia do campus IFRJ-Realengo)
Rio de Janeiro, 04 de maio de 2020.
Referências:
AGAMBEN, Giorgio. Reflexões sobre a peste [recurso eletrônico] : ensaios em tempos de pandemia (Pandemia Capital); prefácio e notas de Carla Rodrigues; tradução de Isabella Marcatti. -1. ed. - Boitempo, São Paulo, 2020.
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra – quando a vida é passível de luto? Editora civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2018;
_____. Vida precária: Os poderes do luto e da violência. Autêntica Editora, Rio de Janeiro, 2019.
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. Cia. Das Letras, São Paulo, 2018.
CHAPARRO, Laura. A medicina não é suficiente: por que precisamos das ciências sociais para acabar com essa pandemia. https://www.cafehistoria.com.br/ciencias-sociais-novo-coronavirus-pandemia/ Acesso em 20 de abril de 2020
DAVIS, Angela & KLEIN, Naomi. Construindo movimentos [recurso eletrônico] : uma conversa em tempos de pandemia (Pandemia Capital); tradução de Leonardo Marins. - 1. ed. - Boitempo, São Paulo, 2020.
GRAEBER, David. Bullshit Jobs: A Theory. Simon & Schuster, London, 2019.
MBEMBE, Achille. Necropolítica e relação sem desejo. In: Políticas da Inimizade. Editora Antígona, Lisboa, 2017.
NANCY, Jean-Luc. Eccezione virale. https://antinomie.it/index.php/2020/02/27/eccezione-virale/ Acesso em 25 de março de 2020.
RODRIGUES, Carla & SANTIAGO, Vinicius. Feridas de uma herança dolorosa. In: Dossiê A violência como ordem. Revista Cult, Edição 232, março de 2018.
SALDAÑA, Paulo. Em meio a pandemia, governo Bolsonaro investe contra pesquisa em ciências humanas. https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/03/em-meio-a-pandemia-governo-bolsonaro-investe-contra-pesquisa-em-ciencias-humanas.shtml Acesso em 26 de março de 2020.
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