“Às vezes, privilegiei raciocínios poéticos e alegóricos; em outros momentos, exposições convencionais de causas históricas. Outras vezes, placas de sinalização foram suficientes. E, ainda outras vezes, escolhi trabalhar com semelhanças. Minha expectativa era que, quando reunidos, esses dispositivos fragmentários acabariam descrevendo uma constelação. Assim, o livro é um diálogo e uma negociação permanentes entre vários discursos e métodos. E fico bem feliz de dizer que esse diálogo e essa negociação nem sempre são conclusivas” (Conversa com Isabel Hofmeyr).
É assim que Achille Mbembe apresenta seu livro De la postcolonie [Sobre a pós-colônia]. Assim também poderíamos figurar sua obra como um todo: flexível, múltipla, fragmentária, incompleta.
Flexível porque é preciso ceder: diante de algo como o fenômeno da raça, que segurança temos no manuseio das formas academicamente estabelecidas de falar verdadeiramente sobre algo? E que importa o enclausuramento nesse falar quando lidamos com a demanda por levar ao fim tudo aquilo que se fez e faz em nome da raça? Basta sabermos o que e como aconteceu, o que e como ainda acontece? E esse saber pode nos mostrar algo sobre a experiência vivida do entrelaçamento dos tempos e das temporalidades, sobre as camadas de ruínas que se deixam atravessar ao ponto de arruinar todo senso de linearidade possível?
Múltipla porque a flexibilidade é uma abertura para um pensamento mais complexo sobre meios e fins. O que é que preciso fazer quando escrevo sobre aquilo que é indissociável de meu destino? Que recursos posso extrair dos mais variados lugares para compor um texto que sirva a mais de uma necessidade, mais de uma urgência, mais de um desejo? Pode-se dizer que uma constelação é a reunião de elementos de mesma natureza, mas uma constelação não é feita de estrelas: ela pode ser feita de membros humanos e corpos animais, de balanças e armas de guerra, de histórias trágicas e monstruosidades, de criaturas míticas e fabricações naturais.
Fragmentária porque o múltiplo e o flexível são também formas daquilo que se deixou em ruínas, ruínas que pedem pela reanimação e por um novo corpo, daquilo que se tenta continuamente arruinar para firmar um destino, um futuro inteiramente antecipado. Para quem a humanidade e todas suas maravilhas devem permanecer um sonho utópico, a lógica da gambiarra permite a apropriação e a invenção, a disrupção e sobrevivência, a criação recorrente de vida, ainda que não seja a vida que pode ser reconhecida nos modelos existentes. Afinal, antes de qualquer coisa, a raça introduz e sustenta uma fratura, um modo de não poder reunir novamente o que se é e aquilo que foi deixado definitivamente no passado, o que não se é e aquilo que foi trazido como definição de futuro.
Incompleta porque a flexibilidade do improviso a partir de múltiplos fragmentos requer uma generosidade. Mesmo que não se possa fechar uma teoria ou um sistema filosófico por conta da natureza daquilo que é tomado como objeto do discurso, mesmo que o fechamento seja um movimento factível que é deixado voluntariamente de lado por uma decisão metodológica e estilística, sobra ainda a questão do que queremos que seja a relação entre o texto e os outros textos, entre os textos e as pessoas com as quais queremos conversar. Há variadas formas de incompletude que são também formas de lembrar que não cabe a ninguém em particular fechar o assunto de vez, que cabe sempre mais um na mesa.
São questões e preocupações como essas – sobre a formação de constelações – que motivam o que escrevo ou falo sobre a obra de Mbembe, que motivam o curso “Mbembe para além da necropolítica”. Há uma motivação ainda mais básica, que é a de oferecer um olhar para outras coisas na obra de Mbembe, coisas que recebem menos atenção que o conceito de necropolítica mesmo tendo seu valor e sendo indispensáveis para falarmos de uma "filosofia de Mbembe". Assim, o curso é uma tentativa de elaborar e apresentar uma figura mais ampla, uma figura da própria paisagem onde as coisas se articulam, onde encontram seu sentido e pertinência, onde ganham um direcionamento.
É do encantamento com essa paisagem que veio essa motivação mais básica – um desejo de compartilhar a vista, de poder dizer “vejam só que interessante como as coisas se conectam, como é incrível o que se pode fazer filosoficamente quando tudo parece esgotado”.
Mais informações e inscrições (até ás 13h do dia 19) no site do Revista Cult: https://www.cultloja.com.br/produto/mbembe-para-alem-da-necropolitica/.
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