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Caio Paz

O imperativo biopolítico

Talvez, de maneira provisória e um pouco esquemática, pudéssemos pensar o atual debate público brasileiro sobre a gestão da pandemia em dois polos opostos. De um lado há os que podemos chamar de negacionistas, aqueles contrários à quarentena e defensores do retorno às atividades econômicas para a salvar a “vida” da economia, que negam e ignoram, portanto, as mortes geradas pela COVID-19. Do outro, os que defendem a quarentena em nome das vidas que serão salvas com o isolamento social, os quais poderíamos chamar “defensores da vida”. Apesar da distinção notória entre as duas posições, ambas se mostram correlatas nas adesões que fazem ao imperativo biopolítico do nosso tempo.

No contexto biopolítico moderno, em que um sujeito político se torna tal pelo simples fato ter uma vida biológica, o espectro científico em torno da noção de vida justifica o direito inalienável de viver ao mesmo tempo em que ele é incessantemente revogado pelas políticas estatais. No entanto, para pensarmos nas implicações ético-políticas desse problema, gostaria de evocar a seguinte pergunta: O que é a vida? Evidentemente, não se trata aqui de responder a essa questão que, desde Aristóteles, não pôde ser respondida, mas pensar no significado político que ela comporta. Ou, mais precisamente, na constatação nada óbvia de que “vida” não é um conceito médico-científico, mas sim um conceito filosófico-político. Para compreender essa tese de Giorgio Agamben e os problemas éticos que ela faz aparecer, é preciso fazer um recuo.

Para Agamben, apesar de a vida nunca ter sido definida enquanto tal, foi a operação filosófica de Aristóteles de realizar a sua tripartição (vida nutritiva, vida sensitiva e vida intelectiva) que permitiu qualificar quais dessas partes eram ou não autárquicas, isto é, suficientemente políticas ou politizáveis. Se hoje endereçamos à ciência a pergunta “o que é a vida?”, ela só pode responder com um gesto simétrico ao de Aristóteles: substituir a pergunta “o que é?” pela “através do que” [dia tí] se diz que a vida pertence a um ser.

É com o “através do que” que a ciência moderna atribui o viver a um organismo. Há cientistas que defendem que a células são as unidades mais elementares da vida e, portanto, nessa perspectiva, o vírus SARS-COV-2, assim como todos os outros vírus não são vivos. Outros especialistas refutam afirmando que o vírus é um ser vivo devido à presença de material genético e à sua capacidade evolutiva. Se essa discussão científica parece infecunda para o debate político, basta deslocá-la minimamente para entender a suas implicações: a partir dessas atribuições científicas que determinam o que é vivo ou morto, é discutível se um feto vive ou não, se um corpo que sofre morte cerebral tem vida ou não. O que essas operações não nos deixam esquecer são as implicações ético-políticas do gesto que essas determinações põem em circulação. Mais precisamente, o gesto de dividir a vida é congênito daquele de governá-la, já que a sua divisão em diversas capacidades ou funcionalidades permitem decidir o que é vivo ou não.

Esse poder de decisão, essa soberania sobre a vida, está intimamente conectada à economia. Essa conexão não está referida apenas ao sentido que essa palavra adquiriu neste tempo que não crê em nada senão no dinheiro, mas também aquele sentido etimológico de oikonomia. Em grego antigo, um dos significados dessa palavra é administração da casa (oikos), que, como espaço privado, distinguia-se do espaço público, dedicado à administração da cidade (polis). Essa oposição tão pouco delimitada na modernidade, que politiza aquela parte vida considerada impolítica pelos antigos, parece convergir com o sentido moderno de economia. A extensão da esfera semântica desse termo não se restringe apenas a uma dimensão doméstica, mas a um governo, isto é, a um paradigma administrativo-gerencial. Não parece ser mero acaso que a atual esfera pública seja pensada quase inteiramente em termos econômicos e que essa mesma esfera coincida com aquela vida que não era entendida como verdadeiramente política. Mais explicitamente: biopolítica é o nome dado a essa economia da vida, isto é, ao modelo de gestão racionalizada dos corpos.

Nesse sentido, tanto os negacionistas quanto os “defensores da vida” respondem por vias diferentes ao mesmo imperativo biopolítico. O “e daí?” do capitão Corona é paradigmático para pensar como esse grupo assume o compromisso com a restauração da “vida econômica” negando, ou mais precisamente, desprezando que essas mortes tenham acontecido. O Messias não traz a redenção e a expiação para aqueles que padecem da doença, mas procura salvar messianicamente a vida das empresas. Foi essa a metáfora usada pela comitiva organizada pelo presidente para ir ao STF apelar pela economia. Para eles, o inimigo é o vírus ou, antes, a quarenta e todas as medidas que paralisam a esfera produtiva. Para combater a esses inimigos, o discurso e as táticas usadas são a guerra e, por isso, sustentam tamanho desdém com as vidas que não cessam de morrer.

A quarenta na sua expressão mais excepcional, o lockdown, é o apelo que se faz para que a mortalidade pelo vírus não alcance parcelas significativas da população. Como tanto tem ressaltado o Jornal Nacional, o apelo é que todos façam a quarentena, menos aqueles que estão prestando serviços essenciais. É importante refletir sobre esta expressão vazia, usada para se referir aos que não podem fazer quarentena, àqueles que em nome da vida precisam se sacrificar. No Brasil, em sua maioria, além dos médicos, estes são os mais pauperizados pela desastrosa distribuição de renda do país: caixas de supermercados, atendentes de pequenos comércios de comida, entregadores de aplicativo e a maioria dos profissionais de saúde mal remunerados. Esses são os soldados de uma guerra, aqueles que, na linha de frente, enfrentam o inimigo-vírus. Aqui também o enfrentamento da epidemia é pensado em termos de guerra.

Mais uma vez, por caminhos distintos, ambos os discursos mobilizados pelo imperativo biopolítico usam a retórica da guerra. Como alerta o texto de Acácio Augusto, publicado pela n-1: “É impressionante como mobilizar essa linguagem de guerra e sacrifício faz com que militares, políticos, gestores, empresário e corporações multinacionais caridosas (bancos e empresas de tecnologia computo-informacional, sobretudo), se tornem, magicamente heróis e salvadores de uma condição que eles mesmo produziram”. Além disso, ele lembra que a epidemia, como fato social e político e não como fato estritamente biológico, atingirá diferencialmente aos brasileiros, dependendo da classe, etnia e gênero. E, nesse contexto: “Muitos, por sua própria condição, serão entregues à morte e, como já foi dito por diversas autoridades no Brasil, mortes serão necessárias para que a ‘vida volte ao normal e o impacto econômico seja mitigado’"






Por isso, o texto Guerra e pandemia: a produção de um inimigo invisível contra vida livre convida a pensar sobre as implicações ético-políticas da gestão da pandemia a partir da retórica da guerra: leva à belicosidade dos “alistados voluntariamente”, que, por sua vez, sentem-se autorizados a dizer como o outro deve-se comportar, convertendo esse não inimigo invisível, o vírus, que não declarou guerra a ninguém, converta-se em pessoas reais e visíveis, os possíveis infectados ou vetores do vírus. Esses tornam-se os reais inimigos.

É também nesse sentido que aponto o texto anônimo Monólogo do vírus: eu vim parar a máquina cujo freio de emergência vocês não estavam encontrando. humanos, esse texto ficcional começa pedindo: “parem com os seus ridículos apelos à guerra”. Mais uma vez, o que ele evoca é a dimensão ético-política que está em jogo nessa retórica de guerra. Nele, é possível ler: “Se não tivessem transformado seus ambientes em espaços tão vazios, transparentes e abstratos, podem ter certeza que eu não estaria a me mover com a velocidade de um avião”. A questão aqui não é assumir uma culpa coletiva tão genérica que só poderia significar a responsabilização de ninguém. Como afirma textualmente, esse vírus não tem outro cúmplice que não seja a organização social e o fanatismo religioso pela economia em grande escala. A máquina que o vírus veio parar, a religião do dinheiro, é aquela que não conhece trégua e indistingue os dias de culto e os dias normaissalvação só vem na forma da culpa. É essa a solução dada pelas corporações multinacionais caridosas, que não oferecem a expiação, mas o endividamento, o estar-em-débito, a culpa que expõe “a aberração da ‘normalidade’”. O vírus expõe a encruzilhada que ocultamente estrutura a nossa existência sob a forma dessa biopolítica capitalista: economia ou vida. O niilismo do vírus pode nos trazer de volta ao nada como se assim, só assim, pudessem encarar o vazio e a violência da civilização, este estado de exceção, que se tornou a regra.







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