"Tal como numa guerra, as pessoas não fazem uma revolução de boa vontade. A diferença está, todavia, em que numa guerra o papel decisivo é o da obrigação; numa revolução, não há obrigação, a não ser a das circunstâncias. A revolução produz-se quando não há outra solução."
(A arte da insurreição, Leon Trotsky, 1930)
A história da humanidade é repleta de tensões, de conflitos, de combates e guerras. Os diversos povos do mundo inventaram as mais diversas artes marciais para lidar com os conflitos da vida, seja individualmente ou em grande escala.
Uma das obras mais conhecidas sobre o tema é a célebre A arte da guerra, escrita há cerca 2500 anos atrás, e de autoria atribuída a um general e filósofo chinês de nome Sun Tzu.
Outro filósofo a dar destaque ao papel do conflito na vida humana foi Heráclito, que chega a dizer que “o combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres”. Não é à toa que para ele o elemento primordial seja o fogo, que tudo consome, e que, ao mesmo tempo, traz a vida. É no fogo que se forja a espada, é no calor do combate que se forma um guerreiro.
Outro autor que via o fator determinante dos conflitos na vida, seja na natureza ou na sociedade, foi Karl Marx. Para este autor, é necessário mergulhar profundamente no estudo dos conflitos e lutas sociais nos vários momentos da história para entendermos a sociedade presente. Sua conclusão é a de que a história da humanidade é a história da luta entre as classes.
Guerra, ciência e arte
Se os conflitos são algo tão presente na vida humana, isso quer dizer que devemos nos dedicar a observar os vários elementos a eles inerentes, quais suas regularidades, quais leis regem sua dinâmica, quais fórmulas podem ser extraídas de sua observação. Nesse sentido, seria possível falar de uma ciência da guerra.
Contudo, uma guerra não é algo que possa ser totalmente mapeado, justamente pelo fato de estar intrinsecamente relacionada à vida em sociedade: ela está sempre em modificação, em desenvolvimento, tal como a humanidade; é viva, dinâmica e complexa. Há sempre novas armas, novas armaduras, novas táticas e estratégias, novas manobras. Apesar de haver elemento comuns, uma guerra sempre é única, porque os inimigos são diferentes, bem como o tipo de terreno em que ela ocorre, o clima, as habilidades. Tudo isso influi significativamente na dinâmica da guerra.
É nesse sentido que a guerra pode ser considerada uma arte. No sentido de que exige uma profunda sensibilidade para a condição situacional, para a mutabilidade das circunstâncias, para o constante “vir a ser” de que trata Heráclito. Essa arte exige, portanto, uma atenção profunda à realidade em seu devir, em suas contradições. Em duas palavras, exige criatividade e plasticidade.
Um importante teórico de guerra foi o prussiano Clausewitz. No seu livro Da Guerra, o estrategista explica porque a guerra poderia ser vista como uma arte e uma ciência. Mas, curiosamente, ele afirma que mesmo essas duas perspectivas são insuficientes para definir a guerra. Ele prefere dizer que a guerra é um conflito de grandes interesses, resolvido (somente?) através do derramamento de sangue. Nesse sentido, a guerra pode ser melhor comparada com o comércio, devido a sua dinâmica de imposição de interesses sobre o outro. Justamente por isso os empresários dedicam-se tanto a estudar as estratégias de guerra, como já apontamos. No atual contexto de pandemia, por exemplo, os “interesses comerciais” podem servir como armas de morte em massa, bastando um conjunto de suprimentos médicos serem vendidos prioritariamente para um país que pode pagar mais caro por eles. Assim, a vida de milhões de pessoas está sujeita aos acordos comerciais, ou, se preferirmos, políticos, do mundo capitalista. É justamente por isso que o autor afirma que a política é uma espécie de comércio em grande escala, ou seja, um imenso mercado mundial, uma feira global, onde disputam-se os interesses divergentes de cada um desses grandes comerciantes. Nesse cenário, por vezes, as disputas de interesses extrapolam a diplomacia, e sangue é derramado.
Vemos, pois, que para Clausewitz o que é essencial à raça humana não é a guerra em si, mas a disputa de interesses. Não havendo outra forma de solucionar essa tensão, essa disputa se materializa em um combate real. Por isso, o autor vai dizer que a política é o "útero da guerra".
É dessa reflexão que surge a célebre frase de Clausewitz: “A guerra é meramente a continuação da política por outros meios”. A guerra é um instrumento político, uma arma usada para fazer valer a vontade de um dos lados sobre o outro. Vale ressaltar, portanto, que os interesse políticos estão antes das ações de guerra, sendo a política inerente à vida em sociedade, uma vez que viver em sociedade é viver em conflito de interesse. Isso é diferente de aceitar que a guerra seja inerente à vida humana, pois, se assim fosse, estaríamos fadados a sempre viver em guerra. Nesse sentido, achamos que a frase não deve ser invertida, como sugere Foucault. Se é verdade que continuamos “em guerra” mesmo quando não estamos em guerra, isso ocorre porque a política tem diferentes formas de fazer prevalecer a vontade de um dos lados sobre o outro.
Quando começa a guerra?
Tendo apresentado como é gerida a guerra, vale agora dizer quando começa a guerra real, não apenas uma “virtual” ou simbólica.
Quanto a isso, Clausewitz propôs uma interessante formulação: a guerra não começa no ataque, como poderíamos tender a pensar. Se há apenas ataque de um dos lados, não há guerra. Há uma outra situação qualquer de imposição de poder, mas não guerra.
A guerra nasce, dirá o general prussiano, quando se inicia a defesa.
Essa formulação parece simples. Mas é um rico extrato conceitual sobre a guerra, pois revela o seu caráter dialético. Uma luta exige que os dois lados estejam dispostos a lutar. Do ponto de vista da guerra, ataque e defesa sempre andam juntos.
De forma correlata, força e resistência também não podem ser vistos como “conceitos” isolados. Só há força quando há resistência. E a recíproca é igualmente verdadeira. Há, portanto, duas forças que agem mutuamente uma sobre a outra, tentando uma se sobrepor à outra. Quanto mais força é empregada, mais resistência é também empregada. Quanto mais empurramos a parede, mais ela nos empurra também.
Vemos que resistência, na gramática aqui apresentada, não é algo passivo. Resistência, nessa perspectiva, é algo ativo. Logo, não se trata da semântica comumente atribuída em português ao termo, que seria algo como a capacidade de se manter realizando certa atividade, de suportar a fadiga ou certo esforço. Segundo esta definição, seria possível dizer que uma pessoa teria mais resistência que outra. Ou seja, adota-se o sentido da estamina.
Não é esse o sentido que queremos extrair do termo. Interessa-nos justamente o sentido que apresenta o caráter agnóstico, conflitante, beligerante, para fugir da possibilidade de que seja possível entrar numa guerra apenas “recebendo o ataque”.
Quando vemos uma situação de tensão na sociedade e falamos que devemos “resistir”, isso significa que não iremos apenas “sustentar o ataque”, mas, que iremos responder proporcionalmente a força empregada com uma força proporcional. Afinal, toda guerra é a prevalência de uma força, seja quem for que inicie a aplicação da força, do ataque.
Se transportamos a gramática da guerra para a lógica da política, vemos que resistir não é apenas “esperar” o ataque cessar, mas responder proporcionalmente.
Obviamente, há várias formas de resistir, várias formas de se defender. Às vezes recuando, às vezes sustentando, e outras vezes avançando. Contudo, se nos defendemos, entramos numa guerra. E se entramos numa guerra, então, necessariamente, precisamos tentar vencer o inimigo, ou seja, neutralizar sua possibilidade de ataque, sobrepujar sua força, por isso é costume dizer que "a melhor defesa é o ataque". Várias são as formas dessa dinâmica acontecer, e é aí que entram, por exemplo, tática e estratégia, as manobras, etc. É nesse sentido que a guerra é uma arte, pois exige que, para além das leis, apresentemos uma resposta ao movimento real dos acontecimentos, é preciso acolher e dar uma reposta à situação, que é sempre dinâmica e complexa. A arte exige criatividade, flexibilidade; além de maestria e conhecimentos das “leis” dessa dinâmica.
O cenário da pandemia
Um dos elementos centrais a serem levados em conta numa situação de guerra é entender o cenário da guerra, saber em que terreno ela ocorre, qual clima, quais as características do inimigo.
Lutar em um campo aberto é totalmente diferente de lutar em um terreno pantanoso. Estar acampado no cume de um penhasco ou na base dele fará toda a diferença para definir a duração do embate, quais armas usar, qual formação, etc.
Da mesma forma, é preciso entender o inimigo. Uma leitura equivocada do inimigo pode ser fatal. Ele ataca pelo ar, pela terra ou por mar? Quais armas ele utiliza? Quando tempo ele consegue manter uma defesa ou um ataque?
A questão dos mantimentos e suprimentos é fundamental. Ter comida apenas para uma semana fará toda diferença se a campanha precisar durar um mês e não houver como repor. Temos exemplos de exércitos muitos mais poderoso em armas e quantidades de soldados que foram derrotados porque o exército inimigo inviabilizou a possibilidade de conseguir novos mantimentos, ou porque os pontos de comunicação foram destruídos.
Se estamos agora em uma guerra, como muitos afirmam, então, quer dizer que estamos tentando vencer um inimigo, uma força que se apresenta. Entender quem é o inimigo e suas características é fundamental, eleger em qual terreno queremos pelejar, quais armas temos mais mestria, ver formas de desarmar o inimigo. Sendo assim, se nosso inimigo é o vírus, precisamos entender como ele se comporta, como se propaga, como nos afeta, como nos mata, como podemos “matá-lo”, como fazer uma vacina, qual remédio usar.
Agora, nos parece que mesmo após vencer o vírus uma situação de conflito permanecerá. Ou, se preferirmos, um outro inimigo permanece atacando e nos matando. Se, por um lado, esse inimigo é também invisível, por outro lado, seus ataques são muito visíveis.
Não é em vão que surge nos discursos dos governantes do país o seguinte “conflito”: economia versus vírus. Apresenta-se o seguinte dilema: o isolamento pode nos salvar do vírus, mas, se a economia estagna, podemos morrer fruto do aumento do desemprego. Por outro lado, se seguimos trabalhando, podemos aumentar exponencialmente a quantidade de mortes. Assim, parece que a questão se coloca é de como eleger o que matará menos: o vírus ou a crise econômica.
De fato, os que dizem que a crise da economia pode matar mais estão certos. Há um “inimigo” que mata mais que o COVID-19: é a economia capitalista em crise. Isso ocorre porque a lógica desse sistema é justamente a lógica do “mercado”, a do lucro, do acúmulo do capital. Ou seja, nessa guerra de interesses uma vontade está prevalecendo, a do mercado capitalista. A vontade dos empresários se impõe mesmo sobre o Estado e é a lógica capitalista que está definindo, inclusive, as leis. O lema é: é preciso salvar a economia, mesmo que para isso seja preciso sacrificar uma parte da população.
Na prática, temos dois inimigos distintos centrais. E cada um deles exige um “teatro de operações” distinto para guerrear, bem como armas, armaduras e táticas especificas.
A arte da insurreição
Leon Trotsky foi mais um desses que participaram ativamente da guerra. Foi o criador do Exército Vermelho, o exército soviético, após a revolução russa de 1917. Mais tarde, foi justamente esse exército que derrotou as tropas nazistas, chegando a invadir a capital alemã, durante a batalha de Kursk, em 1943.
Em sua obra História da Revolução Russa (1930) o autor decica um capítulo para explicar a “arte da insurreição”, onde indica que os processos insurrecionais nunca são fruto da vontade própria de pessoas isoladas, muito menos de pequenos grupos. Trata-se de um processo em que uma massa de pessoas é empurrada a buscar uma saída; é a solução que se apresenta. Os insurretos sentem que não tem mais nada a perder, por isso lançam-se em busca de uma saída radical.
Um exemplo desse espirito é o que ocorre nesse momento (30 de maio) em todo os EUA, após o assassinato de um trabalhador negro (Georg Floyd) por um policial, no dia 25 de maio de 2020. As pessoas vão para as ruas denunciar o racismo, os recorrentes assassinatos por parte da polícia.
Em plena pandemia, com mais de 105 mil mortes registradas só nos EUA, as pessoas atropelam o medo de contrair o vírus e vão para as ruas expressar toda sua indignação.
E não é coincidência que a maioria das pessoas mortas pelo vírus seja de negros (60% das mortes) e latinos. Isso ocorre por motivos evidentes: a população pobre é aquela que recebe os piores serviços de saúde, a pior alimentação, a que tem as piores condições de vida. A morte de Floyd foi a “gota d’água” que fez o copo transbordar. E as pessoas se questionam quantas pessoas precisam morrer mais nessa guerra. A raiva contra a desigualdade, abafou o próprio medo do vírus.
As pessoas perderam o medo; o medo de ser preso, o medo de adoecer, o medo até de morrer. Não fazem isso porque querem, vão para a guerra porque lutam pela vida, e não aguentam mais serem assassinadas sem montar sua autodefesa. É esse o elemento necessário para guerra.
Esse cenário apresenta, literalmente, um “clima de guerra”, porque as pessoas sentem medo de morrer e, justamente por isso, guerreiam, lutam por suas vidas. E a pandemia do COVID-19 tem mais uma característica de guerra: é uma doença que nega o direito de enterrar nossos mortos, não temos nem os corpos dos nossos para nos despedirmos. Temos negado até o direito aos ritos de luto. O cenário de guerra está instaurado. Os inimigos se misturam: vírus e capitalismo.
Nesse tipo de cenário é a política quem comanda, ela é o “útero da guerra”. E, já que as pessoas não enxergam uma saída por dentro das vias “institucionais”, elas se insurgem. Em verdade, elas temem o que virá depois da pandemia, mesmo com o isolamento, porque o cenário futuro que se apresenta é um clima de “pós-guerra”, ou seja, um clima de terra arrasada. E as pessoas sabem bem quem paga os “créditos de guerra”, os mais fracos. O que se espera é que os trabalhadores paguem por estes custos, por meio da austeridade fiscal, por exemplo, através de cortes nos serviços públicos, nos direitos trabalhistas e previdenciários.
As pessoas percebem que os recursos não estão sendo direcionados para onde são necessários: financiar as famílias, pequenas empresas e setores mais afetados pela paralisação. Os poucos recursos investidos para combater a pandemia estão aumentando os déficits orçamentários e as dívidas nacionais, ou seja, dívidas que cairão sobre as costas dos “soldados de baixa patente”, enquanto os reis e generais seguem om banquetes cada vez mais farto
Recurso é elemento fundamental para uma guerra, ele define quem aguenta mais tempo "resistindo". O que vemos é que há uma imensa riqueza ociosa nos monopólios e a pandemia exige que essa quantia seja usada para financiar as emergências necessárias. Porém, busca-se salvar “o mercado”, a economia, e não as pessoas: muitos recursos para as empresas e bancos e quase nada para o povo, os que trabalham incalculavelmente até morrer, literalmente. Nenhum país escapa dessa crise. É uma crise mundial do sistema capitalista.
Mesmo nos governos mais democráticos ou que se dizem mais à esquerda, não temos visto avanço das propostas antissistemas, como impostos para as grandes empresas e nacionalização dos bancos. As empresas é que ditam o comportamento do Estado.
As pessoas estão sendo empurradas para a guerra, para a insurreição. Não porque assim desejem, mas porque não vislumbram outra saída. Hoje, dois problemas se desnudam: a pandemia e a crise capitalista. Mas, como aponta Marx na sua Contribuição à Crítica Da Economia Política, um problema só surge como tal para a humanidade quando ela pode resolvê-lo. Se não houvesse as condições materiais para superá-lo, sequer poderia se apresentar enquanto problema. Há a solução, só resta agora confeccioná-la, através de muitas mãos.
O caráter artístico está, justamente, na forma como serão respondidas cada uma dessas situações, como será cristalizada a solução. Será necessária criatividade para lidar com esse cenário. Volta a velha questão da guerra como a busca da imposição por parte de interesses antagônicos. Nessa guerra, os que resistem ao ataque tem que responder proporcionalmente à força empregada pelo inimigo.
Resta saber qual força prevalecerá. Daqui, seguimos do lado dos mais fracos, dos que perderam o medo.
[1] Felipe Araujo é Doutorando em Filosofia do PPGF/UFRJ, tendo como tema de pesquisa as artes marciais e da guerra. É praticante de Capoeira Angola e Ving Tsun Kung Fu. E-mail: felipe.araujo87@hotmail.com
[2] Créditos da imagem: Jonathan Ernst/Reuters
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