Judith Butler escreve nesse primeiro texto, publicado em 20 de março, uma resposta que pode parecer, a princípio, apressada a uma questão que não tem contornos tão claros e talvez nunca terá. Não está claro que, assim como o título sugere, há um limite para o capitalismo. É óbvio que o título é uma referência ao comentário feito por um político alemão sobre a tentativa de Trump de comprar com exclusividade os direitos de uma potencial vacina contra o coronavírus, e não uma afirmação cegamente otimista vinda de Butler.
No Brasil a situação, que por natureza é gravíssima, piora todos os dias a cada pronunciamento, a cada gesto de Bolsonaro e faz com que a absurda tentativa de Trump, vista daqui, pareça a ação de um estadista, tamanho o desprezo que temos recebido do presidente diante do risco que essa pandemia representa para tantas vidas brasileiras. É absolutamente condenável a tentativa Trump, não intento colocar em questão ou relativizar isso, nem sugerir que o caminho para atravessar essa crise sanitária inclua medidas egoístas e voltadas para o mercado. Quis apenas dizer que abaixo da linha do Equador esse limite do capitalismo parece ser muito mais elástico, uma tal distorção que nem um discurso nacionalista como o de Trump sobrevive. Ter uma questão que não é clara ou mesmo definitiva não impossibilita ou deve desencorajar o movimento crítico de pensar uma resposta a pandemia. Isso garante que parte do esforço de resposta se torne um difícil exercício especulativo. Por essa dificuldade, penso que o que de mais precioso Butler nos oferece nesse primeiro texto é uma pergunta que ainda não podemos responder: “Quais são as consequências dessa pandemia no que diz respeito à reflexão sobre igualdade, interdependência global e nossas obrigações uns com os outros?” É nesses termos que ela mais uma vez nos direciona para outra questão que de alguma forma perpassa seu trabalho desde o início, quais vidas contam como vidas? Pensando novamente sobre a questão do vírus, ter uma questão clara nesse momento seria aderir ao discurso de que o vírus serve a um propósito educacional para uma sociedade desigual, que há uma lição a ser ensinada pelo vírus, como bem destaca Butler em uma de suas respostas na entrevista publicada pelo jornal chileno La Tercera em 3 de abril. Longe de serem esses os termos do que Butler está dizendo, suas respostas e as questões que ela levanta apenas ajudam a expor uma realidade que é anterior a pandemia, somos constituídos por uma vulnerabilidade que existe não enquanto estado subjetivo e sim como atributo de nossas vidas interdependentes. Toda a estrutura que possibilita a sustentação de uma vida sofre constantemente tentativas de ser apagada em nome de um ideal moral de autossuficiência, que a racionalidade neoliberal depende para funcionar. O que muda é que agora nossa dependência radical bem como o fato de que todas as vidas são implicadas umas nas outras, independentemente de laços comunitários ou da nossa escolha, estão escancarados pela maneira como o vírus funciona.
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